“Passei a tarde sozinha, atordoada.
Cancro, eu? E agora?”
Isabel Maria, 38 anos, cancro da mama: “Lembro-me que o sol desapareceu de repente e já não fui comer o gelado com os meus filhos como tinha planeado. Passei a tarde sozinha, sentada num banco, frente ao Tejo, a chorar, a chorar, atordoada. Cancro, eu? E agora?”
O dia estava bonito, luminoso, convidava a andar na rua, sair do escritório a horas normais, mais cedo do que o costume, apanhar os miúdos no colégio, seria uma boa surpresa para eles, e irmos comer um gelado ao Chiado ou dar um passeio a Belém, há tempos que não víamos o Tejo de perto.
Um telefonema da minha médica apanhou-me de surpresa:
- Pode passar por cá ainda esta tarde?
- Esta tarde? Ia buscar os miúdos, mas sim, claro, a que horas, mas, doutora, o que se passa, são os resultados, é alguma coisa grave?
Eram três e quarenta, o dia estava lindo, apetecia sair, tinha levado os ténis brancos num saco, almocei em frente do computador, um iogurte com cereais mais uma maçã e um café, a luz, os miúdos e o gelado a chamarem-me desde manhã, seria bom começarmos o fim de semana um pouco mais cedo, o trabalho pendente ficaria para depois, domingo à noite, quando os miúdos fossem dormir.
Faz agora um ano e nunca mais esquecerei os pormenores daquela sexta-feira, dia luminoso até às três e quarenta da tarde, e que, de repente, ficou carregado de nuvens negras.
Porquê eu? E agora, meu Deus, e agora? E os miúdos, tão pequeninos? E o João, como é que vou dizer ao João? E a minha mãe?
Mais preocupada com os meus do que em mim, andei, sem ver ninguém, das Amoreiras a Campo de Ourique, Casal Ventoso, Alcântara, por caminhos por onde nunca tinha passado, sapatos de salto alto, ténis esquecidos no saco, boca seca, cabeça à roda, e ali fiquei, no paredão, sentada frente ao rio, atordoada, nuvens negras, turbilhão de dúvidas, raiva, medo, questões sem resposta, a chorar, a chorar, a chorar sozinha, e agora, o que vai ser deles, quem os leva à escola, e o João e a minha mãe, e a casa e o emprego, porquê eu, que mal fiz eu?
Saí dali já o sol se punha, no horizonte alaranjado, limpo de nuvens.
Como eu tinha olhos vermelhos em vez de conversa, o taxista avançou: “Rico dia hoje, esteve um belo dia, mais parece verão. O clima anda mesmo descontrolado, tudo ao contrário”.
No percurso até casa, enumerei uma lista de compromissos: não ir abaixo, não chorar à frente dos filhos, ganhar força para reagir às coisas más, fazer tudo o que os médicos disserem. E, lembrando uma conversa tida com uma amiga que já passara pelo mesmo, é fundamental ter confiança e nunca perder a esperança. “Afinal, esta é apenas uma fase da vida.”
O meu caso “resolveu-se” bem e depressa. Como o tumor era bastante agressivo e de dimensão considerável e eu ainda não tinha 40 anos, a situação apresentava-se bastante delicada. Por isso, tudo o que se seguiu foi considerado urgente.
Durante todas as fases do processo, entreguei-me nas mãos dos médicos e respeitei à risca todas as recomendações das equipas que me acompanharam. Encarei as dores, os enjoos, a perda de peso, de cabelo e de sobrancelhas, os momentos de fraqueza física e emocional, como um meio, uma fase do processo que, já sabia, iria ser desgastante e doloroso.
Consegui aguentar, nunca chorei à frente dos meus filhos. Foram eles que me deram força nos momentos mais complicados. Eles e o João e a minha mãe, a família, os profissionais do IPO, e os amigos, alguns dos quais conheci nas salas de espera.
Depois de quatro meses de quimioterapia e mais algumas semanas de radioterapia, fui finalmente operada.
Mais de um ano depois, no dia de mais uma consulta, o céu apresentava algumas nuvens brancas. Depois do jantar convidei os amigos para uma festa lá em casa. Há momentos que nunca se esquecem.
Tenho Cancro. E depois? é um projeto editorial da SIC Notícias com o apoio da Médis.
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